domingo, 22 de outubro de 2017

Mano




Sempre fui um bom carona
Ao volante, meu irmão mais velho
Torcia o pescoço
Retorcia um sorriso filogenético
Ao me ver colocar o cinto
Eu dizia
Mano
E mostrava meus dentes cariados
Durante a fuga do cheiro podre da minha boca
Um cheiro que o mundo conhecia
Que antecedia qualquer lembrança ou pensamento
Que de mim fosse feito
Mas meu irmão parecia não se importar
Talvez até gostasse
Como alguém aprende a gostar do hálito do seu cachorro
E eu dizia
Mano
Eu peguei uma música
E ele ria
E eu ria, pois me sentia um caçador
Algum tipo de caçador de sonhos
Ou mesquinharias belas da vida
Que não pertenciam a nós
É mesmo? O que você pegou?
Tocou naquela rádio que você me mostrou, apertei o rec bem rápido, peguei ela inteira
Coloca aí então
E eu colocava
Eu olhava fixamente para o rosto do meu irmão
E eu conseguia identificar alguns traços da minha mãe
E outros que pareciam ser exclusivos nossos
Como o queixo
E desprezar os outros irreconhecíveis
Que só poderiam ser dos pais
Que ambos desconhecemos
Um coral abria a canção
Eu observava fixamente as expressões do meu irmão
Ele me parecia um quadro sem moldura
Enquanto o mundo sempre o viu como uma moldura sem quadro
Um oco desprovido de carne
Eu sempre tentava
Tentava capturar as emoções que a música poderia suscitar
Ele sempre foi tão sensível
Guardava um punhado de argila no seu quarto
Impedia que as pessoas a tocassem
E tudo isso não era em vão
As sobrancelhas caíram
Com a música
Como folhas
Com a música
Os olhos se apequenaram
Como os sonhos da vida adulta
E um inseto andava pelo vidro do carro
Na parte externa
Indiferente com o rumo da vida
Ao virar o rosto, chorava um pouco
Tirei a fita
Eu já sou homem, disse
Você não deveria estar nessa, mano
A mãe precisa
Ele me alcançou o 38
Te espero ali, naquela bomba
Saí do carro, o posto estava vazio, nos dias de chuva sempre tem menos movimento
Meu irmão empurrou a fita de volta
O som foi interrompido por dois tiros

Meu irmão ao volante
Olha para o banco do carona
Vazio
No de trás, nossa mãe está de óculos escuros
Somente ele chora
No seu quarto um inseto caminha
Sobre a argila, seca
Mas já ninguém pode ver



Tiago André Vargas
22.10.2017



3 comentários:

  1. Cara, li seu poema aqui no trabalho e estou estarrecida com ele. Cara, que coisa maravilhosa, guardei ele na lista dos favoritos. Tem aquele tom que eu gosto, meio tétrico. Eu diria que se o Rubem Fonseca escrevesse poema, seria esse. Excelente!!

    Um grande abraço!

    Ana Idris

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    Respostas
    1. Ana, obrigado por despender seu tempo nessa leitura e, ainda mais, pelo comentário. Fico muito feliz em saber.

      A saber: Feliz ano novo até hoje é um dos meus textos preferidos.

      Excluir

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