“Eu
mudei com o tempo, eu juro”. Seus braços amarrados a uma nogueira, a nuca
raspando o tronco da árvore, o cheiro de uma casca, de outra casca, uma nuvem
de cascas ao longe e o rápido cálculo da probabilidade de ser atingida pela torrente
de mínimas crostas, o dorso nu de um inseto e o desejo incontrolável de
balbuciar decassílabos. Ele limpa seus óculos. Ser um anfitrião na Grécia era
mais simples que em São Petersburgo, disso ninguém discorda, mas agora aqui
estamos e precisamos fazer algo a respeito. “Você criou o mundo, mas não eu”. Ele
sabia. O que era virar um touro e raptar Europa comparado ao ato de se prostrar
diante o desconhecido, das frutas de retina que escorriam do lamento da
incompreensão e que o deixava em estado de aporia. “Eu sou ele, eu gozei o
mundo”. Por certo. A sentença derradeira, o desespero da soberba, a queda dos
anjos, a confissão do fracasso. Ela sorriu. Ele consentiu. “Sim, as vezes isso
acontece”. Agora seria necessário vencer, esmagar, subornar montanhas e mudar
os registros da história para que as cantilenas fossem narradas em falso falsete.
“Primeiro inventamos a coisa”. Por certo. Por certo. “Depois buscamos
significado”. A questão era que havia algum prazer em estar amarrada à nogueira,
especialmente por não ter cordas, e, em fato, vibrar como uma. Tudo era uma
questão de escolher a punição. Ele, quando tinha sua magnificência dobrada pelo
espírito incontrolável e inusitado de um mortal era benevolente: deixava que o
castigo fosse escolhido pelo errante e depois inventava uma sofisticada anedota
como justificação. Não que precisasse justificar coisa alguma, tudo não passa
de uma casca, mas, os talheres não foram inventados para serem postos no jardim.
“Eu quero ser um cavalo azul”. Invejou-a. Quando inventou a história do roubo
de Europa, não teria sido melhor ter escolhido um cavalo? Na verdade, os
chifres eram importantes para que ela se segurasse durante a fuga. Claro, era
necessário fugir rápido. Mas, quanto à cor? Deveria ter escolhido alguma cor quente,
evidenciaria o seu poder divino. E, azul provavelmente teria sido a melhor
opção. Com um gesto levemente penoso lançou o seu corpo em direção ao mar e
presenteando-a com uma lágrima de fogo no peito assistiu-a com admiração
cavalgando em disparada oceano adentro. “Ela
é especial, eu a amo”. Ela ouviu, ela só podia ouvir decassílabos e vibrar com
a fratura dos meses durante a reminiscência da congestão dos sentimentos turvos
de um amor imoral. A maioria esmagadora dos homens durante os milênios
transcorridos morreram sem nunca ver um desses cavalos azuis. Era só um
capricho, só uma casca, algum nó, um sentimento confuso. Era só a criação do
mundo, feita assim, por acaso, como um macaco que descobre o orgasmo e logo
depois olha para os lados, assustado, mas, estando só no universo, lhe cabe aguardar
que o esperma faça a necessária negação do criador para girar a roda fastidiosa
do mundo através dos anais das bananeiras, cachos de dores, algum potássio e
uma linda casca, escorregadia, indecifrável. “O touro foi bom, mas, azul era a cor. Sempre foi”.
29/08/2017
Tiago André Vargas