domingo, 27 de dezembro de 2015

A busca pelo olhar presente



Desde que iniciei a transcrever uma passagem para cada livro lido, este foi o mais difícil. Édipo Rei, de Sófocles, na qualidade dramatúrgica das clássicas tragédias gregas, principia com falas enigmáticas de intensidade suprimida, conduzindo assim, lenta e sabiamente, o drama. Ao final a carne se abre, junto com a intensidade das falas e ações. É teatro, vivo, de um sangue humano que após dois milênios continua com o mesmo gosto.
Vamos à passagem:

Creonte: Direi, pois, o que me disse o deus. Ordena-nos Apolo que apaguemos a mancha que alastrou na nossa terra, que a façamos desaparecer, em lugar de a deixarmos aumentar; devemos recear que se torne inexpiável.
Édipo: E de que espécie é esse mal? Que expiação?…
Creonte: Expulsando um homem dos nossos territórios ou vingando o crime com o crime, porque é um crime que está arruinando a cidade.
Édipo: Contra que homem foi cometido o crime de que fala o oráculo?
Creonte: Senhor, foi contra Laio, outrora rei da nossa terra, antes de seres tu o chefe da cidade.
Édipo: Já ouvi falar disso; eu nunca o vi.
Creonte: O oráculo ordena claramente que sejam castigados os que assassinaram esse homem.
Édipo: Em que terra estão? Como se há-de encontrar qualquer vestígio desse crime tão antigo?
Creonte: Diz o oráculo que há vestígios na cidade. Só se encontra o que se busca; o que nos é indiferente, de nós foge.

Sobre a passagem: nada de dramaticidade. Apenas uma fala para salientar como é genioso ‘buscar’. E, caso aquilo que se busque não seja passível de ação (seja por limitação, ou por reflexão) é imprescindível, mesmo dentro da inanição, reconhecer o que gostaríamos de alcançar. Pois, se a ‘sorte’ nos visitar, só a reconheceremos como ‘sorte’ se já estivermos imbuídos com o gosto deste encontro. Sem isso, não a perceberíamos como tal. Ainda (e principalmente): após o encontro, a busca continua. A realidade nunca é estável, permanecer imutável é dar asas para a indiferença, que, foge. Muitas vezes levando consigo o que, após perdermos, não nos era dispensável. A única maneira de vencer a indiferença natural que decorre sobre o ‘achado’ é recriando o seu significado, ou então, a maneira de vê-lo (recriando a si próprio). Édipo vai dizer: “Que me importa ver, se nada me era agradável à vista?”. Nesse ponto do drama, Édipo era incapaz de atribuir qualquer significado, nada do que poderia ver conversaria com a sua existência. Para isso, mudou sua maneira de enxergar: Arrancou os próprios olhos.


27.12.2015
Tiago André Vargas

Louis Bouwmeester como Édipo, na produção alemã de "Oedipus the King"  - 1896


quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O isqueiro está na terceira gaveta



Eu me lembro da luz
Flâmula
Da grandeza da miúda vela no teu pequeno apartamento
Da fumaça que morria nos teus cabelos
Devagar
Como um navio fantasma
Engolfando a proa no peso da noite

Eu me lembro
Do meu nariz
Grande e atarantado
Procurando tua raiz
Teu fumo e teu sumo
Chafurdado na nuca telúrica
O arpéu da narina preso ao brio
De um brinco que você não tirou
Naufragando
O que tua boca não separou
De mim

Eu não me lembro
Do poema
Que inscrevi
Nas tuas costas
Mas me lembro
Da tua aflição
Por não conseguir lê-lo
E me lembro do ferrão da abelha
Que fecundou o teu lábio superior
Enquanto você falava que estávamos em dezembro
Enquanto você falava que seus braços eram flexíveis
Enquanto você sonhava sobre mim
Como se estendesse um cobertor sobre uma cama bagunçada
Que não precisa ajeitar
Só precisa ser quente

23.12.2015
Tiago André Vargas

Fotografia de Tiago André Vargas


quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Au, au e estamos conversados – Marcelo Mirisola



Passagem do conto “Qual o Mal de a Mina?”, do livro Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia (Editora Estação Liberdade, 1998), do autor Marcelo Mirisola:

(...)
Hoje é a palavra pela palavra. A solidão da coisa feita. Ou a indisposição de frequentar o casamento dos amigos. Eu lhe digo, embora não tenha nada a ver com esta viadagem de dizer “porque eu sou um artista e coisa e tal”, eu lhe digo a mesma coisa que eu disse para a armeniazinha do Bom Retiro, sabe, meu amor, quem faz arte como eu serve a morte; morre várias vezes ao invés de viver uma vidinha de armarinhos; daí vem a demagogia e a comparação que eu sempre faço nesses casos: “que nem cachorro”, sabe? Sem frescuras do tipo “Bom dia, como está?” Cheirando logo o cu da rapaziada. Se Michelangelo, para falar de um cara que todo mundo conhece, vivesse hoje e pudesse escolher, cheirava o cu da rapaziada e vice-versa. Au, au e estamos conversados. Depois ele iria cuidar de Davi e de Moisés. Que, bem verdade, são exemplos latentes, primeiro Moisés e depois Davi, da solidão da coisa feita.
(...)
Agora é para você, meu amor.
Sou capaz de matar por uma guimba manchada de batom. De ser um santo, quer dizer, o que eu tenho vontade mesmo é de ser garçom. De verdade mesmo eu tenho vontade é de cobri-la na porrada, de quebrar a sua cara e falar algumas coisas que você não vai compreender. Também dar uma volta de pedalinho no Lago Lundoya, minha branquela, e depois comprar uma maçã do amor para nós dois e mais um sorvete de flocos para mim. Pegar na sua mão e dizer que amo você.

17.12.2015


Fotografia de Jonatan Mattsson.

domingo, 6 de dezembro de 2015

E nós estamos dançando - Chuck Palahniuk



Passagem do livro Sobrevivente (Survivor - 1999), Chuck Palahniuk:

(...)
O cabelo dela parece que foi colhido num campo e empilhado na cabeça dela para secar.
"Ele chegou a te contar do cruzeiro em que ele me levou?"
Não.
"Foi totalmente ilegal."
Ela olha da Catacumba número 678 para o teto, de onde vem a música, dos pequenos alto-falantes ao lado das nuvens e dos anjos pintados.
"Primeiro, ele me fez ter aulas de dança com ele. Aprendemos todas as danças de salão, o chá-chá-chá, o fox-trote. A rumba, o swing. A valsa. A valsa foi fácil."
Os anjos tocam sua música acima de nós durante um minuto, dizendo algo a ela, e Fertility Hollis ouve.
"Me dá", ela diz, virando-se para mim. Então ela pega as minhas flores e as dela e as coloca encostadas na parede. Ela pergunta: "Você sabe dançar valsa, certo?".
Errado.
"Não acredito que você conheceu o Trevor e não sabe dançar valsa", ela diz e balança a cabeça.
Na cabeça dela ela tem a imagem do Trevor e eu dançando juntos. Rindo juntos. Fazendo sexo anal. Estou com essa desvantagem, isso e a ideia de que matei o irmão dela.
Ela diz: "Abra os braços".
Eu abro.
Ela fica bem diante de mim e coloca uma mão atrás do meu pescoço. Sua outra mão segura a minha mão e ela estica o braço, à nossa lateral. Ela fala: "Pegue sua outra mão e coloque em cima do meu sutiã". Eu obedeço.
"Nas minhas costas!", ela diz, e se desvencilha de mim. "Coloque a sua mão sobre o meu sutiã onde ele cruza a minha espinha dorsal."
Eu obedeço.
Para nossos pés, ela me mostra como dar um passo adiante com meu pé esquerdo, depois com o direito, e depois colocar os dois pés juntos enquanto ela faz o mesmo na direção contrária.
"Esse é o chamado Box Step", ela ensina. "Agora preste atenção na música."
Ela conta: "Um, dois, três".
A música vai. Um. Dois. Três.
Contamos várias vezes, dando um passo a cada vez que contamos, e estamos dançando.
As flores em todas as catacumbas por todas as paredes se curvam sobre nós. O mármore corre liso sob nossos pés. Estamos dançando. A luz entra pelos vitrais. As estátuas estão esculpidas em seus nichos. A música sai fraca dos alto-falantes e ecoa pelas pedras até que começa a ir e vir em ventos e correntes, em notas e acordes ao nosso redor. E nós estamos dançando.
(...)

06.12.2015


Fotografia de Markus Probst.


domingo, 29 de novembro de 2015

Quando você monta em um leão não dá para apear



Você me olha como uma porra. Você me olha como uma mulher feliz no zoológico no momento excelso: a jaula do leão. Você me olha como uma mulher que não leu Beauvoir e teme a beleza do fio de cobre na garganta de um amante de diamante, pensando que, se não é vaidade, deveria ser amor. Você não diz isso para o leão, que sou. Você joga uma pipoca pela grade. Ela tem sal. Cai no meu olho. De leão. Eu poderia rugir, mas, sefoder. Você jogou uma pipoca pelo meu bem. Você jogou uma pipoca porque você possui uma pipoca e é isso que se espera de alguém com uma pipoca. Você. Sefoder. Deixo meu pau de leão rubro e inchado, como se trinta e duas abelhas tivessem picado minha pica. Você fica tão vermelha quanto minha glande. “Que horror”. A vida é um horror, queria poder dizer, esse pau é um presente. Mas só posso rugir. E eu não vou rugir. Se eu rugir as pessoas jogarão mais pipocas, as pessoas tentarão tirar a foto excelsa da minha boca aberta. (Eu aprendi hoje a palavra ‘excelso’ no dicionário de pensamento felino). As pessoas gostam das garras, dos dentes, gostam de dizer que gostam das garras, dos dentes, mas as pessoas fogem de um leão solto. As pessoas não suportam o olhar frontal de um animal livre. Não suportam um pau roxo da cor do palato do céu do sentimento. “Você parece um leão com esse cabelo. Deveria cortar”. Ela me olhava de baixo para cima. Um ângulo que favorece minha juba. Ela corre os dedos pela minha juba. Ela olha com fascínio minha juba. É o momento que nasce ou morre o amor. EU SEMPRE QUIS TER CONSCIÊNCIA DESSE MOMENTO. Se eu falar que cortarei o cabelo bang! O amor está morto. Não sabia se o queria vivo. Sempre quis a consciência desse momento e agora me arrependo de tê-la. Eu aprendi que a morte é algo ruim. Sempre. Eu deveria ter lido Céline ao invés do dicionário de pensamento felino. Eu falei: “Sefoder. Sou a porra de um leão”. O amor que nasce de uma contradição é dois miligramas mais forte. Ela me olhou como Beauvoir o fez com Algren, quando descobriu que o pau e a vida de alguém que sente são muito mais interessantes do que o pau e a vida de alguém que pensa. Ela. A cabeça apoiada no meu colo. O olhar de baixo para cima. O meu pau cutuca a sua nuca, ela sorri, meu pau cutuca novamente, ela sorri e fica angustiada, sabe que a próxima cutucada é só uma questão de tempo, que acontece, ela dá uma gargalhada e abraça minha barriga. Volta. Fica séria. Olha para os meus olhos de leão sincero e de pau inflado. “Sefoder. Sou a porra de uma mulher”. Se ela falasse, o amor nasceria em mim. Ela não falou. Em um silêncio mágico de vidro agitando o alívio do vento alísio ela me deu sete orgasmos, um par de asas e um rabo de serpente. Ela montou em mim. Colocou a serpente ao redor do pescoço delgado, como se fosse um cachecol verde com olhos malignos de rubi, depois deu um tapa na minha anca e gritou: “Avante!”. Eu bati minhas asas de grifo. O céu nos abraçou. O céu tinha passado perfume de ameixa. “Vamos para onde?”. Sou um leão taxista das galáxias. “Me leva para onde você tem medo”. Existem várias oportunidades para o amor nascer na floresta da catarse.
Ela mordeu meu pescoço, enquanto voava.
Eu rugi.

29.11.2015
Tiago André Vargas

Fotografia de Art Shay. Reza a lenda que a modelo é Simone de Beauvoir, que, surpreendida ao tomar um banho de porta aberta, disse para o fotógrafo "vous êtes un mauvais enfant / Você é uma criança má". E continuou seu banho deixando que ele a fotografasse.

domingo, 8 de novembro de 2015

Azul Adentro



Qual música você cantará?
Mulher azul de respiração azul
Quando o pulmão negro se abraçar no espelho
E os dedos secos tirarem música do pelo hindu

Quanto tempo você fica debaixo da água?
Mulher azul de respiração azul
Se a água que escorre não morre mil léguas
O tempo nos dedos, a bola planeta, só mais um vodu

No controle vermelho a rosa alfinete fura o botão do dedo
Queima a consciência de folha de bananeira em janeiro
Mas nunca a mulher azul de respiração azul
Quando os olhos lacustres engravidam a esperança que escorre no ventre nu

Nasce algo para dizer que amar é pouco
Nasce algo para lamber a morte no rosto
Afundando como uma pena no ar
Ninando-se sem saber
No pulmão negro do mar


Tiago André Vargas
08.11.2015


Fotografia de Jan Netik.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Do maturar pela arte, do maturar pela Vida – Oscar Wilde



Ontem terminei de ler O Retrato de Dorian Gray (Editora Abril, 1973). Romance do irlandês Oscar Wilde, escrito em 1891, um clássico que versa sobre a juventude, o escorrer do tempo e as mãos atadas aos desejos. A seguinte passagem me marcou, muito. Breve transcrição para enganar o tempo:

(...) Por isso, começou por dissecar a si mesmo e acabou dissecando os outros. A vida humana parecia-lhe a única coisa digna de investigação.  Em comparação com ela, tudo o mais nenhum valor oferecia. Verdade é que todo aquele que observa a vida, em seu estranho crisol de dor e prazer, não podia usar a máscara de vidro no rosto, nem impedir que os vapores sulforosos lhe perturbassem o cérebro e turvassem a imaginação com monstruosas fantasias e sonhos informes. Havia venenos tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, fazia-se mister experimentar seus efeitos em si mesmo. E enfermidades tão estranhas que era preciso tê-las sofrido, para compreender-lhes a natureza. E, contudo, que grande recompensa se recebia! Em que maravilha se transformava o mundo inteiro! Anotar a curiosa e violenta lógica da paixão, e a vida emocional e colorida da inteligência, observar onde se encontram e onde se separam, em que ponto se harmonizam e em que pontos discordam – que deleite havia nisto! Que importava o preço? Nunca saía caro demais o preço de semelhante sensação.
Tinha consciência – e, ao pensar nisso, os seus olhos de ágata escura cintilavam – de que, devido a certas palavras suas, palavras musicais pronunciadas melodiosamente, a alma de Dorian Gray inclinara-se para aquela moça pura, caindo em adoração diante dela. O adolescente era, em grande parte, sua própria criação. Tornara-o precoce. O que já era alguma coisa. As criaturas vulgares esperam que a vida lhes manifeste os seus segredos, mas à minoria, aos eleitos, são-lhes revelados os seus mistérios antes de cair o véu. Às vezes, isto se dá por efeito da arte, e principalmente da arte literária, que se relaciona diretamente com as paixões e a inteligência. Mas, de vez em quando, uma personalidade complexa substituía e ocupava o ofício da arte; chegava a ser realmente, a seu modo, uma verdadeira obra de arte, pois a Vida, tal como a poesia, a escultura ou a pintura, produz as suas obras-primas.
Sim, o adolescente era precoce. Fazia a sua colheita, apesar de estar ainda na primavera. Possuía o impulso e a paixão da juventude, mas começava a ter consciência de si mesmo. Era delicioso observá-lo. Com o seu belo rosto e sua bela alma, era algo de maravilhoso. Pouco lhe importava o fim de tudo aquilo, se é que tinha um fim. Ele era como uma dessas graciosas figuras num cerimonial ou numa peça de teatro, cujas alegrias nos parecem remotas, mas cujas dores nos abrem os sentidos para a beleza, e cujas chagas parecem rosas vermelhas.
(...)

02.11.2015

Textos Não Tetos




terça-feira, 20 de outubro de 2015

O espaço e o eu - J. M. Coetzee



No Coração do País (1977). Romance do escritor sul-africano John Maxwell Coetzee. Breve transcrição para falhar (sem ludibriar) o esquecimento:

237.
Verões e invernos vão e retornam. Como passam tão velozes ou quantos passaram não sei dizer, posto que não me ocorreu, há muito tempo, começar a fazer marcas numa vara nem rabiscos na parede nem a escrever um diário de boa renegada. Mas o tempo fluiu incessantemente, e eu sou de fato uma velha malvada e louca, com o dorso arqueado e o nariz adunco e os dedos nodosos. Talvez me engane ao descrever o tempo como um rio a correr de infinito a infinito, levando-me consigo como uma rolha ou um graveto; ou talvez, tendo corrido na superfície, o tempo seguiu subterraneamente por certo período e depois tornou a emergir por motivos para sempre secretos para mim, e agora corre outra vez à luz, e eu sigo com ele e posso ser ouvida novamente, após tantos verões e invernos nas entranhas da terra, durante as quais as palavras devem ter prosseguido (pois onde eu estaria se se houvessem detido?), mas prosseguido sem deixar vestígio, sem memória. Ou talvez não exista tempo, talvez me equivoque ao conceber meu meio como temporal, talvez só haja espaço, e eu, uma mancha de luz a movimentar-se errante de um ponto a outro do espaço, a saltar anos num instante, ora assustada criança num canto da sala de aula, ora velha decrépita de dedos nodosos, o que não deixa de ser possível – minha mente é receptiva – e explicaria em parte a incerteza com que guardo minhas lembranças.


20.10.2015
Textos Não Tetos




domingo, 4 de outubro de 2015

Desemboca



Odeio as pessoas
Apaixonadas
Pela própria
Voz

Odeio a pronúncia de garoa
Cortina de fumaça
Da escória
Foz

Elas falam e águam
Quando calam
Desmancham

Incapazes de sustentar um olhar em silêncio no peso do ventre
Incapazes de engolir o corpo mudo pelo silente afluente
Nadam Não Dragam ; na brevidade do sempre


Tiago André Vargas

04.10.2015


Fotografia de Hermin Abramovitch.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Primarvera



É primavera, eu não te amo. Chupa essa bagaça, arregaça e afaga a mágoa da marca aureolada que eu te dei. Cansei. Você pensa que é um pensamento em mim. O sol nasceu e você morreu, antes do fim, na última linha, um tropeço para a vitória, não, é tarde. É tarde. Não? É tarde. É na tarde que nasce a primavera, depois que o sol almoça e fica gordo, quando os ponteiros trepam em cima do número doze, tic-tac, o maior cuco da América Latina copulando de maneira subdesenvolvida, nas esquinas, quebramos o leite quando derramamos o copo: senado-verão, centrão, prestação que não deixa prestar atenção! Lá vem o trem. É inverno na Síria, sem gíria, se anima, o mundo tem sua periferia masss se visto com a bunda sentadita em uma cadeira da puta Cochinchina não há linha. A linha não existe, Manolo. Nem mesmo a estação! Nem da vera-verão, nem da prima-vera. A flor se abriu, há esperança. Não. É tarde. O trem vem de outra estação Estranha-Sensação do Brasil. Do outono eu não falo se não eu me abro, desabrocho quando murcho. É primavera, estou confuso. Alguém passa margarina em mim para eu sorrir. Olha! Um camelo! Tirem-no da minha frente, ou eu o fumo. Fumo o camelo que cheira a flor que abraça a primavera. Longe demais. Perto demais. Alguém passa uma linha para eu saber onde estou. Não. Fiquem onde estão! Nada pode se mover! Vejam! Todos estão respirando! É um milagre. Todos vivos! Com seus sentidos! Com suas guerras particulares que nada sabemos a respeito! Ainda assim compartilhamos o ar, sem nos conhecermos. Deveremos dar as mãos? Quem sabe uma ciranda? Aprendemos que falar a verdade trás consequência, e consequência é uma palavra de peso morto mosca morta, mentira trás esperteza, avarenta ascendência. Ele se deu bem. O mundo é dos espertos! Ésquilo gostava de morrer no outono. Isso é um assalto! Ninguém desabrocha! Passa, passa, a primavera, na atividade! Roubaram os gregos. Ésquilo espera ser contemplado no consórcio. Se não existisse flor, não existiria primavera. Se não existisse a Vera Fischer, estaria tudo bem. As abelhas fazem poemas para a primavera, com suas patas rechonchudas, polainas de pólen, tão sinceras e sóbrias, bota um pouco de mel no chá, meu filho, alivia a enxaqueca, crescer é um problema, crescer é ser vespa, amar é hornet. Adulto estação, adulto trem. Só amanhã de manhã. Seja bem-vinda, primavera. Contamos com você para matar agosto, para nos livrar do desgosto, para mostrarmos nosso corpo e assim, como laranjas pétalas chovendo em setembro, quem sabe nos reconhecermos. É primavera. Eu não te amo. Mesmo que amasse. Sempre foi tarde.


Tiago André Vargas
28.09.2015


Fotografia de Kurniadi Widodo.


sábado, 26 de setembro de 2015

Kundera e a base da fraternidade humana: O kitsch



A insustentável leveza do ser (Editora Nova Fronteira, 1985, tradução de Tereza B. Caravalho da Fonseca), romance épico de Milan Kundera (1929 – República Checa), é, principalmente, um mergulho sutil e recôndito sobre as possibilidades dos relacionamentos amorosos. Seus personagens reúnem a diversidade dos traços humanos despidos, no segredo que paira no ar quando um corpo é contemplado no espelho, vago conceito, quem somos? A atmosfera é linda. Tchecoslováquia, 68, invasão Russa, primavera de Praga. O mundo tentando buscar o mundo, que poderia ser as pessoas, e as pessoas machucando as pessoas, que poderiam ser o mundo. Positivo, negativo. Pesado, leve. Há muitas resenhas sobre este livro, mas não sobre o Kitsch, palavra alemã que tem um conceito fantástico. Segue abaixo transcrição:

(...)
3
Quando era garoto e folheava o Antigo Testamento para crianças, ilustrado com gravuras de Gustave Doré, via nele o Bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor, tinha olhos, um nariz, uma longa barba, e eu dizia a mim mesmo que, como tinha boca, devia comer. Se comia, devia ter intestinos. Mas essa ideia logo me assustava, porque, apesar de pertencer a uma família pouco católica, sentia que havia algo de sacrilégio nessa ideia dos intestinos do Bom Deus.
Sem o menor preparo teológico, a criança que eu era naquela época compreendia espontaneamente que existe uma incompatibilidade entre a merda e Deus, e, por dedução, percebia a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas uma: ou o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus – e então Deus tem intestinos - , ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele.
Os antigos gnósticos pensavam tão claro como eu aos cinco anos. Para resolver esse maldito problema, Valentino, Grão-Mestre da Gnose do século II, afirma que Jesus “comia, bebia, mas não defecava”.
A merda é um problema teológico mais penoso que o mal. Deus dá liberdade ao homem e podemos admitir que ele não seja o responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem, somente a ele.

4
No século IV, São Jerônimo rejeitava categoricamente a ideia de que Adão e Eva tivessem tido relações sexuais no Paraíso. João Escoto Erígena, ilustre teólogo do século IX, ao contrário, admitia essa ideia. Mas, segundo ele, Adão podia levantar seu membro mais ou menos da mesma forma que levantamos um braço ou uma perna – portanto, quando quisesse e como quisesse. Não procuremos nessa ideia o eterno sonho do homem obcecado pela ameaça da impotência. A ideia de Escoto Erígena tem outro significado. Se o membro viril pode se levantar por uma simples injunção do cérebro, presume-se que a excitação não é necessária. O membro não se levanta porque estamos excitados, mas porque lhe damos uma ordem. O que o grande teólogo achava incompatível com o Paraíso não era o coito, nem a volúpia a ele associada. O incompatível com o Paraíso era a excitação. Guardemos bem isto: no Paraíso existia volúpia, mas não existia a excitação.
Pode-se encontrar no raciocínio de Escoto Erígena a chave de uma justificativa teológica (ou teodicéia) para a merda. Enquanto foi permitido ao homem permanecer no Paraíso, ou (como Jesus, segundo Valentino) ele não defecava, ou – o que parece mais provável – a merda não era considerada uma coisa repugnante. Ao expulsar o homem do Paraíso, Deus revelou-lhe sua natureza imunda e repulsiva. O homem passou a esconder aquilo que o envergonhava, e, no momento em que afastava o véu, era ofuscado por uma grande claridade. Assim, logo após ter descoberto a imundície, descobriu também a excitação. Sem a merda (no sentido literal e figurado da palavra), o amor sexual não seria como o conhecemos: acompanhado por um martelar do coração, e pela cegueira dos sentidos.
(…)

5
O debate dos que afirmam que o universo foi criado por Deus e aqueles que pensam que o universo apareceu por si mesmo implicam em coisas que vão além da nossa compreensão e experiência. Muito mais real é a diferença entre aqueles que contestam a existência tal como foi dada ao homem (pouco importa como e por quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas.
Por trás de todas as crenças européias, sejam religiosas ou políticas, está o primeiro capítulo de Gênese, a ensinar que o mundo foi criado como devia ser, que o ser humano é bom e que, portanto, deve procriar. Chamemos essa crença fundamental de acordo categórico com o ser.
Se, ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros por reticências, isso não se devia a razões morais. Afinal de contas, não se pode considerar que a merda seja imoral! A objeção à merda é de ordem metafísica. Defecar é dar uma prova cotidiana do caráter inaceitável da Criação. Das duas uma: ou a merda é aceitável (e, nesse caso, não precisamos nos trancar no banheiro), ou Deus nos criou de maneira inadmissível.
Segue-se que o acordo categórico com o ser tem por ideal um mundo no qual a merda é negada e no qual cada um de nós se comporta como se ela não existisse. Esse ideal estético se chama kitsch.
Esta é uma palavra alemã que apareceu em meados do sentimental século XIX e que, em seguida, se espalhou por todas as línguas. O uso repetido da palavra fez com que se apagasse o seu sentido metafísico original: em essência, o kitsch é a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal quanto no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.

6
A primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha uma conotação ética, mas estética. O que a repugnava não era tanto a feiúra do mundo comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com que ele se disfarçara, isto é, o kitsch comunista. O modelo desse kitsch era a chamada festa de 1º de maio.
Tinha assistido aos desfiles de 1º de maio numa época em que as pessoas ainda estavam entusiasmadas, ou ainda faziam força para dar essa impressão. As mulheres vestiam blusas vermelhas, brancas ou azuis, e, vistas das varandas e das janelas, formavam os mais diversos motivos: estrelas com cinco pontas, corações, letras. Entre os diferentes setores do desfile, avançavam pequenas orquestras que davam o ritmo da marcha. Quando o cortejo passava diante da tribuna oficial, mesmo as fisionomias mais taciturnas se abriam num sorriso, como se quisessem provar que estavam alegres como deviam, ou, mais exatamente, que estavam de acordo com o que delas se esperava. Não se tratava de um simples acordo político com o comunismo, mas sim de um acordo com o ser enquanto tal. A festa do 1º de maio abastecia-se na fonte profunda do acordo categórico com o ser. A palavra de ordem tácita e não escrita do desfile não era “Viva o comunismo!”, mas sim “Viva a vida!”. A força e a astúcia da política comunista foi ter se apossado dessa palavra de ordem. Era precisamente essa estúpida tautologia (“Viva a vida!”) que levava ao desfile comunista pessoas completamente indiferentes às ideias comunistas.

7
Uns dez anos mais tarde (ela já morava na América), um senador americano amigo de seus amigos levou-a a passear em seu enorme automóvel. Quatro garotos estavam sentados no banco de trás. O senador parou; as crianças saíram e começaram a correr em um gramado imenso, em direção a um estádio onde havia uma pista de patinação no gelo. O senador ficou ao volante olhando com ar sonhador as quatro pequenas silhuetas que corriam; virou-se para Sabina: - Olhe para eles! – disse, fazendo com a mão um gesto amplo que abrangia o estádio, o gramado e as crianças. – É isso que eu chamo de felicidade.
Essas palavras não eram apenas uma expressão de alegria diante das crianças que corriam e da grama que crescia, era também uma manifestação de compreensão em relação a uma mulher que vinha de um país comunista em que – o senador estava convencido – a grama não cresce e as crianças não correm.
Nesse momento, Sabina imaginou o mesmo senador no palanque de uma praça de Praga. Em seu rosto havia exatamente o mesmo sorriso que os estadistas comunistas, do alto de seus palanques, dirigiam aos cidadãos igualmente sorridentes, que desfilavam aos seus pés.

8
Como podia este senador saber que crianças significavam felicidade? Enxergaria dentro de suas almas? E se três dessas crianças, quando saíssem do seu campo visual, se atirassem sobre a quarta, esmurrando-a?
O senador tinha apenas um argumento a favor de sua afirmação: a sensibilidade. Quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções. No reino do kitsch, impera a ditadura do coração.
É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Portanto, o kitsch não se interessa pelo insólito, ele fala de imagens-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na grama, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.
O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira diz: como é bonito crianças correndo no gramado!
A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda humanidade, diante de crianças correndo no gramado!
Somente essa segunda lágrima faz com que o kitsch seja o kitsch.
A fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base senão o kitsch.
(...)

26.09.2015

Cena do filme The Unbearable Lightness of Being (1988), com os personagens de Tereza, Tomas e o cão Karenin.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Bois ares


Amor em Áries
Mercúrio alcoviteiro
Cascos em Aires
Arquitetura dos segredos

Tango-da-vida
Tango-do-touro
Existe pasto na Argentina?
Ela perguntou, no aeroporto

Proferi
Para os bons ares
Meu sorriso mudo de jasmim
Bois aves

Te amo tanto, meu Touro Ápis
Ela me disse, no aeroporto
Meu mugido era um lápis
Escrevia: eu sou torto

Você é torta
Somos um só coração bovino adstringente
Vento é capim quando você me toca
Capim verde, verde lindo, verde sente

Eu despachei os olhos e as feridas
Ela despachou a retina e os beiços
A vida é o êxodo da vida
O jornal da nação dizia: 90% da população vive nos centros

Os bons ventos
De Buenos Aires
Levaram os bois ventos
Longe de Buenos Aires

Na pequena província de Las Flores
Uma estrela bovina cadente cruzou o céu
Nossos cornos delicadamente se tocaram
Nenhum desejo foi feito


Tiago André Vargas
16.09.2015



Pintura de Monika Frick.


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