domingo, 18 de agosto de 2013

Três cores e/ou uma dança perfeita





Uma breve conversa sobre movimento.
Sem gesticular, trepidar ou comover os lábios.
Uma conversa sui generis, sólida e inexistente.
Três da manhã.
Seis olhos abertos.
Três lares distantes.
Zeras.
Sem som.
Culpa.
Muita culpa.
É preciso voltar logo a dormir.

As três mulheres detentoras de magnânimos úteros e reclusas emoções delineadas, visíveis apenas aos lobos ou raça equivalente, abriram os seis olhos em um despertar forçado às seis da manhã.
Seus corpos flácidos sem tempo para o suor estático são lavados com desdém, subjugados pela incredulidade que algum poeta seria capaz de uma quadra em lisonja.
Nenhuma cor dos olhos daquelas três mulheres se repetiam, belo seria suas faces adjuntas entornadas por moldura de madeira velha.
Mal acordaram.
Mal banharam.
Mal comeram.
Mal sabiam.
Já saíram.
Cada uma em seu carro. Todas sozinhas. Com veículos de cores dessemelhantes as latarias e aos olhos.
Cada uma dirigia velozmente, a matéria ágil se deslocava indiferente às emoções que pulsavam em cada esquina; os canivetes limpos nos bolsos de homens sujos, os ovos amarelos libertos meticulosamente por uma joaninha, a mulher à janela de cigarro entre dedos aguardando o fim dos dias.
Todas viravam o retrovisor fitando parcialmente o próprio rosto, inconscientes do desejo da imagem que ansiavam. Apenas olhavam, desconexas com si próprias, tal qual produto em prateleira que será olhado com prévia certeza que não será levado.
Nestes momentos, os sentimentos não permitem surpresas.
Quis este filho sem nome e com vaga impressão de um sobrenome que estas três mulheres parassem ao mesmo tempo em fronte a uma sinaleira.
Os três carros, as três cores dos seus olhos, as três cores do semáforo, as três ânsias no contar do tempo.
Todas olhando para frente, concentradas no nada. Objetivando a partida, racionalizando a chegada não questionada.

Um idoso, fatigado pelas passadas de tantos anos e de olhos fechados, cego talvez, ousou tocar um primeiro pé com cuidado na faixa de pedestre. Ele segurava uma corda cinza aparentemente tão antiga quanto si próprio e na ponta desta, um vira-lata amarelo de estranhos olhos verdes tal qual folhagem de aglaonema.
O homem caminhava devagar.
Cada passo seu era estudado.
Zeloso.
O cão jamais espichava a corda. Caminhava em um trote interrupto, suas passadas condiziam as do velho amigo, uma dança inventada pelo desgaste do tempo através da exaurida corda que os unia.
Uma dança de verdade.
Uma rara dança real, espontânea, sinceramente brutal e lenta, tão lenta e implacável como o escorrer dos nossos sonhos.
Os seis olhos lhes acompanharam de uma ponta à outra da calçada.
O tempo da travessia foi exatamente a troca de cores do semáforo.
Quando o verde no céu brilhou, mais claro e menos sincero que o par esverdeado no rosto do animal, nenhuma daquelas mulheres sabia precisamente o que fazer. Para onde seguir. Por que seguir. O que era seguir.

Dentro de cada cor de cada semáforo existe um desejo latente de parar ou continuar. Geralmente de continuar. Nem sempre é possível. Paciência é preciso, ou, estar no lugar certo.
Alguma analogia sobre a vida e a invenção do progresso.

Faltou algo nesta conversa.

Um pedaço rançoso que desrespeitosamente será pronunciado com a bravura de um pesar ingênuo:

Aonde.

Tiago André Vargas


Imagem de Alina Shamalova.

domingo, 11 de agosto de 2013

Schopenhauer chope na hora





Arthur pediu um chope. Sábado quente, cintura pélvica flertando com a cadeira plástica, mãos despreocupadas, olhadela no quadro insignificante de um cavalo pendurado torto na parede. Decoração ruim é reconfortante. Que gostoso tudo isso, pensou, apesar de, pensar que gostoso era tornava menos gostoso. Prazer é não pensar, esticar as pernas, umedecer a herpes labial com a ponta da língua e esperar pelo chope.
Esperar por algo.
Esperar por algo te leva a pensar, não fosse isso, a espera seria o nirvana.
Arthur, infelizmente, devaneou mundo adentro: Chope se bebe acompanhado. Sozinho, Schopenhauer. Acompanhado se fala. Os animais não falam; se comunicam com seus zumbidos, grunhidos, relinchos, latidos e provavelmente não se compreendem, apenas sentem. Se expressam ao sentir e escutam para sentir. Quando o homem faz algo parecido? Pensou Arthur. Quando escreve, ou lê. Poesia, preferencialmente. Poesia absurda que fala sobre gafanhotos em chamas sobre o saco escrotal de um homem apartidário. Isto é um relincho solitário em pronúncia e audição. Tudo porque inventamos uma língua lógica em um mudo razoável e a emissão de sons indecifráveis ou a pronuncia de palavras que não constroem coerente utilitário entendimento é vigorosamente repudiada, padres e psicólogos são rapidamente chamados e com suas valises tentam consertar esta símia sinfonia.
Contudo, a língua escrita aceita sofismas e outras torções, até mesmo a contestável loucura. Tudo, porque é feita sozinha. Na solidão aproxima-se de algum eu petiz pouco interessado em julgamentos, correções. Estar só é nudez sem dedos. Dois passos a entrar em algum canteiro com gramado cheirando arte, perfume voyeur, nada de intromissão.
- Seu chope, senhor.
Arthur bebeu o chope vigorosamente. Pode sentir a cevada rodopiando na infecção do lábio, um deslizar gelado, goela, goela, goela, gemeu quando terminou o copo, da maneira que aprendeu nos comerciais.
Prazer.
Sentiu vontade de conversar com alguém, mas não tinha amigos. Nem gostava de conversar, pouco sabia como fazê-lo. Olhou os arredores, não havia ninguém sozinho. Olhou para a pintura do cavalo. O cavalo estava sozinho. Anotou um recado na agenda que sempre carregava consigo, fechou-a escrupulosamente e caminhou até o dono do bar com visível repúdio (olhava de esguelha o dente de ouro do comerciante). Entregou-lhe uma nota sem dizer nada.
- Até mais ver, Schopenhauer.
Arthur fez um gesto qualquer com a cabeça.
Meu sobrenome é Poças, seu filho da puta.
Saiu do bar com a língua pousada no lábio, surpreendeu-se com um rato que corria para uma boca de lobo.
Arthur fez um gesto qualquer com a cabeça.
Estava na hora de aceitar o amor como meta e parar de pensar.
Pensou.
O que é o amor?


Tiago André Vargas
11.08.2013

Imagem de Lauren

domingo, 4 de agosto de 2013

Seu céu





Pessoas não olham para o céu.
Poderia ser poesia, talvez o seja em linha escorrida. Cabelo em completo desinteresse da beleza simétrica, na beatitude comprada entre vidros de perfumes tão reduzidos em fronte o cheiro de cada poro seu.
Pessoas não olham para o céu.
O chão no medo de tropeçar. Em frente o anseio de prosseguir. Os lados na metódica dança frigorífica na repulsiva ideia cosmológica de esbarrar em carne vestida. Tudo em ordem. Menina com ossos lisos de gata trouxe a desordem e minha gratidão ignorada foi agarrada pelas pétalas de uma flor com muitas expressões. Me disse que gostava de olhar para o céu. Enquanto acadêmicos estudam regras eu chupo sonhos do cotidiano e as letras ordenadas é só uma provocação de liberdade, o primeiro beijo na boca de caju ou os braços abertos na bicicleta que voa para o sol.
Engenharia simples: Sapos mortos; ela tinha medo de ser trocada e mesmo assim olhava para o céu.
Todos somos trocados. Promessas, sonhos de tempestade de areia, coágulos, água oxigenada, comercial ofensivo na mídia impressa, você, eu. Mas, nunca você e eu. Não existe troca no você e eu. Só troca de você e eu. Trocamos olhos carentes, corpos latentes, cafuné melado de sonho bom e brincadeiras com a rainha e o seu cheiro preferido.
Eu coleciono vida e não a mostro para ninguém.
As tintas que tirei da tua pele hoje são fortes nos meus olhos, mesmo se no futuro que não existe elas estejam enfraquecidas como uma poesia distante de vinhedos ou a descrição de uma tempestade lúgubre, não importará, elas terão o seu lugar, impassível de troca.
Não há troca para o vivido.
O céu é o que nos une.
Sempre vem o melhor grito quando não adianta gritar.
Chora céu. Ri céu. Dança céu. Canta Céu.
Foi pelo vazio lá de cima que eu te envolvi num abraço.
Olha o céu.
Que tal o céu?
Seu céu.

Tiago André Vargas


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