terça-feira, 28 de maio de 2013

Boca cheia




Nesta noite
Ela não quis falar

Com o tecido do rosto inchado
Com suas vestes de linhas curtas
Com seus sonhos violados
Com seu manual de conduta

Ela escondia algo na boca estufada
Uma chave
Um apito
Miolo de pão
Tédio
Amor próprio

Ele não viu

Nesta noite
Toda noite
Sempre noite
Ele quis falar

Da maneira como se salva uma vida
As invisíveis pontilhadas linhas
Escabrosos esboços de término e partida
Seios, abacates, rodeios e alquimia

No rádio
Alguém grita
Tangerina
E a dor do tamanho de um ônibus estaciona no peito dela

Amanhã tinha feira
Algo deveria ser feito
Pulso e banheira
Sexo sorrateiro

Ele não sabia
Ela só sentia

Sua boca cheia de sonhos e sementes de melancia
Não queria falar
Seria feio cuspir o banal
Seria pecado proferir a fantasia
Ninguém salvou a vida de ninguém
Se pudesse, diria
Se pudesse, cuspiria e viveria
Nessa ordem
Só que hoje ela é jovem
Ninguém vive enquanto é jovem
Vive-se uma promessa do viver
A boca cheia
Horizontes
Sementes
Escárnio do tempo que não deixou de voltar

Nada há para ser dito essa noite

Tiago André Vargas


Imagem de Berk Öztürk.

domingo, 12 de maio de 2013

Devolver o entardecer





Já fui olhos. Já fui água. Já fui dança. Já fui brasa.
Acostumei-me ser feixe de luz para viver no clarão e dormir seguro.
Achei que não precisava devolver, como tantas coisas.
Depois das páginas viradas. Reviradas. Arrancadas. Escritas somente no verso, amassadas e largadas na rua principal de uma cidade secundária, pisoteadas por pés terciários.
Catarros.
Bitucas.
Um poema que escrevi sobre quadriláteros.
Alguém sente esperança.
Já fui esperança.
Já fui água.
Mas agora eu tiro do bolso da minha camisa o entardecer. Certa pompa. Como outrora, sendo dentes, fiz com bolas de gude.
Só que hoje eu sou água.
Água salgada.
Fora do mar.
Lágrimas sem choro. Molhado estou por dentro apesar de sentir-me tão seco.
Já fui seco.
Mas agora é hora de devolver o entardecer.
Depois da vida tanto brilhar para mim.
Depois de tudo que fui nem a sofreguidão de subir uma escada assegura-me que realmente fui algo. Mas eu tenho um passado. Sinto. Como é possível sentir o vento.
Mas agora devolvo o entardecer.
Grato pelo brilho que me coube.
Permito algo.
Que troquem o canal.
Que roubem meus talheres.
Que rejeitem meu amor.
O sol se foi, agora é só uma questão de tempo.
Tanto faz.
Palavras.
Ponteiros.
Rodas.
Cartas.
Vasos.
Flores e sanitários.
Retorno.
Volta.
Outra volta.
De volta.
Em volta.
Devolvo o entardecer para cair a escuridão no tempo de ser o que me cabe.

Novamente abraço minha sombra e junto com ela me desfaço.


Tiago André Vargas




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