quarta-feira, 25 de abril de 2012

O homem que embalou meu filho e enviou-o pelo correio

Demorou muito para ele sair. Ele ficou lá por demasiado tempo, incomodando, tirando sono. Atormentando minha vida, poupando somente meu sexo ou nem isso. Mas de alguma forma, inversa, reversa, transversa, eu sabia que gostava dele. Gostava de ter criado ele. É gostoso mesmo brincar de ser criador, maestro de uma ópera muda, cuidar de orquídeas, descuidar de cravos.
Então lá estava meu filho.
Ele não existia, mas eu sabia que ele estava lá. Crescendo. Ganhando forma. Sobrevivendo a sua maneira. Poucos além de mim sabiam da sua existência, mas, indiscutivelmente, lá estava.
Eu estava prenhe.
Então pari. Pra valer.
Nasceu pesado que só, tanto que as pessoas ao ouvirem sobre seu tamanho ficaram assustadas, até mesmo temerosas por minha saúde. Não foi um parto normal para o mundo, somente para mim.
Mas parir não é fácil. A até então incompreensível depressão pós-parto fez sentido.
Ele está ali. Ele é real. E agora?
Era para ser especial? Alegre? Único? Inefável?
Ele está ali.
Olhando.
Não caga.
Nem pode ver, mas mesmo assim olha.
Pesquisando sobre outros que já pariram descobri alguém com dicas preciosas. Dicas de avó lúcida.
Registre o seu bebê!
Um passo a passo de como registrar bebês. Tão inconveniente, mas preciso, pois nos dias atuais existe roubo até disto.
Era necessário então vesti-lo com uma roupa apropriada e enviá-lo ao órgão específico de registro, uma entidade que lhe atesta como genitor.
Ele tinha que ir para lá.
Mas como?
Tive então que mandar meu filho pelos correios, mas sem pena.
Não suportava mais olhar para ele como um inválido, aguardando algo acontecer, imponente no berçário, sem brinquedos, sem chorar, nem mais sabia se vivo estava. Queria gritar com ele. Dizer bem alto: Torna-te algo! Vá perturbar os outros! Já não chega ter te criado ainda queres minha tutela?!
Mas eu não podia fazer isso.
Sou orgulhoso.
Não dá para brigar com algo que você criou, bom senso deveria ser mandamento.
Mas e aí?
Aí fui para os correios.
O cara que me atendeu era fantástico, de verdade. Pude perceber isso no exato momento que ele olhou para o filho que em um braço carregava. Disse para ele:
- Bom dia.
Ele respondeu:
- Bom dia.
Eu já tinha almoçado, mas como pensei que ele ainda não havia, quis ser educado.
- Bem, eu nunca enviei nada pelos correios.
Ele continuou a me olhar sem dizer nada. Melhor que a simpatia desenvolvida em treinamento de vendas.
- Tenho que mandar ele pro Rio de Janeiro para registrar os direitos autorais.
- Você escreveu isso?
- Sim.
- Quantas páginas têm?
- 391.
Eu gostava de falar 391. Não 390. 391 passava a ideia exata do quanto eu conhecia o meu bebê.
Então ele quebrou o protocolo, se tornou humano e me motivou a escrever isto neste exato momento sendo que deveria estar dormindo. Às vezes penso que sempre deveria estar dormindo:
- Puxa vida. É bem grande. Demorou quanto tempo para escrever?
- 3 anos... O primeiro bem devagar, o segundo quase nada e no terceiro praticamente todo, mais de 300 páginas.
- Por que no segundo quase nada?
- Tava terminando a faculdade.
- De que?
- Administração.

Fantástico.

Ele me deu um olhar absoluto. Sorriu.
Aquele homem atrás do balcão dos correios sabia do que eu estava falando, ocorreu algum tipo de espelhamento, ele sentiu-se parte da busca do meu sonho e realmente assim o era. Ele, falastrão, poderia ter exigido uma lógica mas pode compreendê-la antes de tachá-la. Talvez fosse a sua lógica com outro sonho. Ou, quem sabe, sem sonho.
Mas, para as boas pessoas, fazer carinho em cães dos outros também é bom.

- E você vai conseguir publicá-lo?
- É possível, tem uma editora também do Rio que está interessada.

Ele anuiu com a cabeça. Pareceu torcer por mim.
Me ajudou amigavelmente a escolher a melhor forma de envio, empacotou meu filho com o maior cuidado possível, cuidado que talvez nem eu tive com ele depois de impresso, quer dizer, vivo.
- Boa sorte então amigo, espero que dê certo.
- Boa sorte pra ti também cara, tudo de bom G.
Despedi-me dizendo como última coisa seu nome. Ele ficou feliz. Costumeiramente não deveria ser chamado pelo seu nome apesar de carregar um crachá, mas nós não precisávamos de nomes. Nós precisávamos de sorte. Precisávamos tomar uma cerveja e falar mal dos nossos empregos. Precisávamos terminar a conversa naquele exato momento e nunca mais reconhecermos nossas faces para que as coisas ficassem naquele exato e precioso estado.
Um torcendo pelo outro, indiferentes a alheia existência enquanto meu filho viaja sozinho pela utopia e eu, vertiginosamente orgulhoso, finjo por momento que ele nem mais existe enquanto sinto seu irmãozinho chutar na minha mente. Pra valer.

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Rui Jorge.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Noite - ponte / você

Talvez fosse todo café
Sabores de outra escravidão
Talvez fosse bossa-nova
Incompreendida ausente solidão

Não sei o que me faz pregar
Olhos e relógios em ponteiros
Noite adentro nada a pensar
Bebendo água sem mágoa
Gosto nobre de silêncio

Logo todos planos são planos
O resto do café limpado a pano
Toda noite na noite é engano
Todo dia a vida afora
Sem porta
Agora

Mas ainda há esta madrugada
Saboreio o erro de acordado permanecer
Jogo perdido sem última cartada
Dormir e esquecer

MAS

E

VOCÊ

?


.

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Beebaxer .

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Mancha abstida

Mãe
Chocolate mancha?
Suco de abacate mancha?
Ou só o passado?
Mute.

Todo helminto tem uma história para contar
Supostamente você deve ouvir
48 horas-aulas para aprender a dançar
Pilhas de revistas para descolorir

Por hora desejo o mundo mudo
Não a exata inexistência do som
Mas do contínuo sobretudo
Calado em cerúleo néon

Então as mulheres que caminham serão somente isso
E um cão com fome terá a vastidão da humanidade
Para que cada olhar seja um anel perdido
E Clarice não venda no céu claridade

Memórias de bolso
Furado
Autoria de Tiago André Vargas
Imagem de Oana Cambrea.

sábado, 14 de abril de 2012

Se você diz

Meus belos cílios de espinho
Não posso fechar os olhos
Você diz

Me deixe construir outra catedral
Neste temporal de flores mortas
Nesta inglória luta escrava
Nesta escrava fome reclusa
Nesta vadia opaca escuta
Nesta travessia sem faixa onde ninguém pode morrer
E nem vontade basta
Ou gado pasta
Questões; não as faça
Estamos bem, sem podermos ser, sem saber, se é.

Autoria de Tiago André Vargas

Imagem de  Errema.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Elas tatuam borboletas


As árvores voavam rápidas através da minha visão estática.
Talvez passassem por mim, ou, através de mim.
Não poderia fazer isso por muito tempo de qualquer forma.
Enjoo.
O ônibus parou, bem como faria outras vezes para rasgar minha rede de pensamentos recolocando-me em meu devido lugar. No ônibus.
Ela entrou.
Não foi simples assim.
O ar se eximiu um pouco, a gravidade desprendeu-se um pouco, a calota polar saiu da roda, o mundo saiu da rota, estávamos em queda livre no espaço azul escuro. Não. Eu estava.
Ela carregava consigo uma borboleta tatuada no colo.
Era mágico, como ver pela primeira vez uma girafa. Eu sorri o mínimo que pude para não chorar.
Ela escolheu seu lugar a esmo, não era isso que os olhos castanhos pareciam procurar. Mas algo procuravam.
Sentou-se dois bancos a minha frente na coluna oposta e meu olhar diagonal pode contemplar metade do seu rosto, o cabelo caía-lhe sobre a face suavemente antes dela enfiar o indicador por debaixo empurrando-os para trás da orelha.
Pequena orelha.
Pequeno brinco.
Pequena borboleta.
Aquela tatuagem parecia querer me gritar algo. Correr pelo céu, bater asas, ser livre. Ser leve. Ser belo. Ser elo para a dor. A lagarta, o casulo e somente depois a brisa leve acariciando aqueles que a podem enxergar.
Será que toda mulher que imputa uma borboleta abaixo da pele busca liberdade?
Cuidado?
Que alguém crie flores para seu deleite matutino nos quentes dias de março?
Ou será que é apenas uma questão de se transformar em outra coisa? Que coisa? Qualquer coisa, ora. Na impossibilidade de saber quem se és como saber quem virás a ser. Transforme.
O ônibus parou novamente relembrando-me do ônibus.
Ela se ergueu.
Recém tinha entrado e estava se encaminhando para descer.
Pude ver sua tatuagem novamente de relance enquanto morria alguns meses.
Será que ela tinha pegado o ônibus errado? Será que seus olhos castanhos encontraram algo? Uma resposta, talvez.
O ônibus arrancou. Nutrido do olhar mais compenetrado aproximei-me da janela fazendo com que minha respiração embaçasse-a. Me afastei um pouco.
Ela.
Colocou a mochila sobre os ombros agudos.
Olhei para a borboleta amarela seguida de sua face.
Os olhos castanhos olhavam para mim.
Me encontraram.
Nada mais.
Depois as árvores voltaram, velozes, indiferentes ao meu desejo.
Mas eu não poderia fazer isso por muito tempo.
O ônibus parou.
De vez.
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Celeste.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Pupila sem compêndio

- Por que você me olha assim?

Lança-me um quebra-cabeça de 8 mil peças e pede que seja montado em 20 segundos. Trato sem tato. Como poderei saber por que te olho assim quando todos os eventos fatídicos da minha vida e até mesmo o desejo deste eu tão pouco cultivado exige, EXIGE, olhar para tua janela de persianas quase sempre abertas?
Saber por que te olho assim?

- Eu não sei.

Você reprime o rosto, interpreta-me desinteressado, o elogio ansiado fora trocado por um coaxo e já descrente do meu sangue real não me beija, apenas vira a cabeça mostrando-me tuas guelras.
Lisa.
Mal sabes que para este convicto racional olhar algo sem saber o motivo é o maior lisonjeio passível de ser dado.
Não é analítico, nem contemplado.
É um olhar denso, quase arfado, tal como um lago escuro que reflete a própria imagem antes de atirarmos uma pequena pedra para tudo desaparecer.
E algo acontecer.

Autoria de Tiago André Vargas
Imagem de Janne Tuominen.

domingo, 1 de abril de 2012

Ladrão de maquetes

Amarelo.
Vermelho.
Para o carro. Esquina. A fantástica esquina.
Era impressionante para Aloísio aquela sinaleira que sempre lhe recebia com sua luz amarela.
Vermelha.
Por quê?
Ele sabia o porquê.
Eram as cerejas.
Aquelas duas cerejas grafitadas no fim da parede que lhe eram tão convidativas, lembravam um jogo. Caça níquel. Já haviam duas, faltava apenas uma, certo? Aloísio não sabia muito sobre jogos, mas sabia que todo dia antes do trabalho parar naquela maldita sinaleira olhando para as cerejas sem saber onde a estreita rua levava lhe era angustiante.
E se ele dobrasse?
Não, chegaria atrasado ao trabalho.
Mas é sexta.
E daí?
Tem reunião!
Ligou a seta.
A sinaleira abriu e os poucos fios de cabelo que lhe restavam sobre o crânio pareciam agitados, temerosos, abraçavam-se em busca de conforto. Acelerou. Estava em um jogo? Começou a girar o volante se aproximando das cerejas e de perto o desenho parecia ainda mais bonito. Vistoso. Tentou se lembrar qual era o gosto de uma cereja, mas a atenção necessária ao dirigir pela viela impossibilitou.
Acelerou.
Emergiu algo.
Reduziu.
Uma mulher negra andando de short azul rasgado, suas pernas brilhavam como as de uma mesa de madeira sucupira que fora lustrada com força. Muita força.
Ela sorriu.
Era a terceira cereja.
Em segundas iniciaria uma tormenta de moedas no céu. Gritaria com os braços estendidos: Ganhei!
A beldade começou a abanar sua pequena e delicada mão como quem pede para baixar o vidro.
Aloísio baixou o vidro.
- Cê tem permissão pra andar por aqui?
- E precisa?
Talvez não fosse uma cereja. Ela gritou:
- Ô Zé!
Chinelo, bermuda, regata e uma Glock atravessada na cintura. O cabo pra fora, proposital. O Zé veio. Também não era uma cereja.
- Se perdeu amigo?
- Pois é, eu acabei dobrando essa rua errado, pensei que tinha que pegar ela para chegar na Coronel Pedro.
- Hum... Pegar uma rua sem saída para chegar na Coronel Pedro?
- Essa rua é sem saída?
- Tá de palhaçada comigo irmão?
- Imagina, eu realmente não...
- Que porra é aquela?
Zé apontava para uma maquete que Aloísio carregava no banco de trás do carro.
- Ah, isso é uma maquete que desenvolvemos para o trabal...
- Passa.
- O que?
- Aquela porra. Meu moleque vai gostar de brincar com ela. Passa.
- Ele vai gostar é de quebrar ela. – Disse as pernas reluzentes, deveria ser a mãe.
Aloísio entregou cuidadosamente. O pequeno prédio de isopor, os carros em miniatura, seu dia.
- Tá, vaza maluco e não entra mais nessa rua, você tem cara de policial tá ligado?
- Pode deixar.
Manobrou o carro 4 vezes sobre olhares atentos de Zé e saiu de frente. Tremia tanto que não conseguiria fazer de ré.
Assim que seus nervos permitiram adotou um vago semblante sorumbático e continuou seu caminho pragmático.
Chegou no seu trabalho.
Estacionou na sua vaga.
Entrou na sua sala.
Encontrou o seu chefe. Novamente não era uma cereja.
- Atrasado mas a tempo da reunião, onde está a maquete para discutirmos o projeto imobiliário em questão?
- É uma longa história senhor, eu posso explicar mas nem sei por onde começar sei que o senhor vai ficar muito...
- Onde ela está?
- Com um traficante.
- A maquete?
- Sim.
Mais que descrente, visivelmente ofendido disse:
- O senhor ainda valoriza o seu emprego senhor Aloísio?

No outro dia Aloísio mudou o caminho até o trabalho.
Jamais esqueceu o gosto de duas cerejas.

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Mateusz.

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“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviá...